sábado, 13 de março de 2010

O Roteiro (trecho)

 O testemunho humano, demasiado humano (como diria Nietzsche) de um homem que teve a coragem de mergulhar profundamente em suas feridas, transformando toda a sua dor e humilhação em instrumentos para o seu crescimento pessoal.



Personagens:

Wilde
Guarda Martin*

(em off)
Inquiridor/Juiz
O Marquês
O Amigo
A Mãe (de Wilde)
O Algoz
O Preconceito (Diretor do jornal)
O Sátiro
Narrador final (pode ser usada a mesma do Amigo)

*Preferível utilizar um ator, nada impede porém realizar com voz em off)

Sons
Aplausos misturados com vaias;
pessoas sentando
vaias, aplausos, assobios
ruídos de portas de carceragem sendo abertas/fechadas.
falas em off

Objetos referidos:
Cama (sem colchão) - opcional
Mesa
toalha para a mesa (tecido rústico)
lençol/cobertor - opcional
Uniforme de prisioneiro (tecido rústico, calça/blusa, sem cordão)
sapatos (sem cadarço quando prisioneiro)
traje social (terno c/colete, bengala, chapéu)
um lírio
2 cadeiras
prato de metal (ágate ou flandres)
caneca de metal ( “ “ “ )
talher
Bíblia
Caneta (bico de pena, tinteiro)
Uma folha de papel almaço
estopa (ou saco de aniagem)
barbante (ou agulha e cordão p/costurar)
jornais (p/compor o monte)


[Cabelos bem alinhados, elegantemente vestido — não sem um toque de extravagância — e tendo à mão um lírio, dirige-se à platéia, do centro do palco, como um mestre de cerimônias, pontuando cada palavra.]

— O eterno paradoxo da alma humana é que ela possa ser ao mesmo tempo completamente livre e completamente dominada.

[Salão imaginário de um Tribunal. Voz inquisitorial em off. Responde de pé, a cabeça ligeiramente inclinada para cima, indicando encontrar-se em posição inferior ao seu inquiridor. Encontra-se calmo, autoconfiante, com extremo distanciamento emocional e algum fino senso de humor.
O inquiridor destaca-se pela capacidade de triturar através de perguntas. Sua estratégia é provar a suposta imoralidade do caráter de Wilde através de sua obra literária.]

Inquiridor: — Há um trecho em O Retrato de Dorian Gray, no qual um personagem diz ao outro, bem mais jovem do que ele: “- Está bem, admito: eu amo você loucamente.”
Sr. Wilde, qual é a sua opinião sobre este tipo de sentimento?

Wilde: — Me parece perfeitamente natural; um acontecimento corriqueiro na vida de quase todo artista. Expressa o sentimento do artista diante de uma personalidade exuberante, inspiradora tanto de sua arte quanto de sua vida.

Inquiridor: — Uma pessoa comum poderia ver neste tipo de afeição uma certa tendência…?

Wilde: — Desconheço quais sejam as opiniões das pessoas comuns. Por outro lado, não tenho responsabilidade sobre a maneira como as pessoas irão interpretar minhas obras. A visão que o leitor venha a identificar nelas reflete antes os seus próprios olhos, não os do artista.

Inquiridor: [Bruscamente] - V.Sª já adorou algum jovem loucamente, Sr. Wilde?

Wilde: — [Refletindo] Não diria loucamente... Prefiro mais a palavra amor... Não lhe parece mais elevado?...

Inquiridor: — Tais assuntos são para o ambiente de seus salões, Sr. Wilde, não para uma Corte de Justiça... [Incisivo] - Qual é a sua resposta?


Wilde: [Sutilmente irônico]— Jamais adorei a alguém que não a mim mesmo.


[Black out.
Vozes em off.
A luz vai revelando Oscar agora já na cela, em seu uniforme de prisioneiro, o olhar distante… Na medida em que as falas vão se sucedendo, ele olha de um lado para outro, como que a procurar de onde vem cada voz, levando por fim as mãos ao rosto em desespero.]

O Marquês: — Esta safadeza já dura três anos. Se ele não se afastar de meu filho vou fazê-lo em pedaços. Já avisei!

O Amigo: [ um pouco aflito] — Oscar, você está maluco? De onde tirou a idéia de processar o pai desse seu amigo?

Wilde — Oh, Frank, você não imagina o quanto este homem me tem provocado… Chegou agora ao cúmulo de me fazer acusações públicas…

O Amigo : — Não percebe?… Ele jogou a isca e você caiu direitinho… Está fazendo justamento o jogo que ele quer. Deixe de tolice: juri nenhum jamais condenará um pai que alega ter agido em defesa do filho. …E você não é bem o que se poderia chamar de um modelo de moral vitoriana. É você quem será condenado no final! É o que lhe digo: pare já com essa loucura! Pegue sua mulher e seus filhos e vá para o exterior. Não há mais tempo a perder!


O Algoz [irritado e cheio de ódio]: — Quem o aconselha a fugir como um bandido só prova que não é seu verdadeiro amigo! Tive muito trabalho em convencê-lo a mover esse processo e não serão vocês que irão fazê-lo desistir justo agora!
— Oh, Oscar, não nos abandone! A paz de minha família está em suas mãos. Você sabe muito bem o quanto meu pai tem infernizado a vida de todos nós, com seus escândalos e tirania. Só você pode nos livrar desse tormento.

A Mãe: — Oscar Fingal Wilde, se você fugir, jamais tornarei a lhe dirigir a palavra! Não lhe conheço como filho!


[A luz vai se apagando… Volta a cena do Tribunal.]

Inquiridor: — Em uma das cartas que V.Sa. escreveu ao Sr. Alfred Douglas, há um trecho que diz: “Você é a coisa divina que eu desejo, plena de graça e beleza (…) Por que você não está aqui, meu querido, meu menino maravilhoso?” [Subitamente] …Em sua opinião, Sr. Wilde, esta seria uma carta comum entre dois homens?

Wilde: — Não sei, senhor. Eu não me ocupo com a correspondência alheia. No que me diz respeito, afirmo a V.Sa. que é uma belíssima carta.

Inquiridor: — Fora da Arte, Sr. Wilde?

Wilde: — Sinto, senhor, mas não sei responder fora da Arte.

Inquiridor: - Escreveu outras cartas no mesmo estilo?

Wilde: - Eu jamais repito o meu estilo!

Inquiridor: — Segundo declarações de testemunhas que aqui depuseram, V.Sa. freqüentava um certo salão, situado na Rua Colégio Pequeno, de propriedade do Sr. Taylor, preso durante uma batida policial em uma outra “casa” semelhante, em companhia de homens vestidos de mulher e artistas de musicais. Como V.Sa. definiria semelhante ambiente?

Wilde: — [Pensativo] Não era luxuoso, mas bastante agradável... A iluminação, acolhedora, se compunha muito bem com o cenário. Tinham o hábito encantador de utilizar perfumes em difusor: um delicioso aroma de rosas inundava o ambiente. Fui apresentado ao Sr. Taylor, e ele me pareceu uma pessoa sensível, criativa e inteligente. Por seu intermédio vim a conhecer outras pessoas, para mim igualmente encantadoras.

Inquiridor: — …Jovens porteiros, copeiros ou desempregados, aos quais V.Sa. cobria com presentes e dinheiro, em troca do prazer de sua companhia?

Wilde: —Não costumo travar conhecimento com as pessoas a partir do volume de seus saldos bancários ou mesmo dos cargos que ocupam. Na verdade, escolho os meus amigos pela essência, os conhecidos pelo caráter, e os inimigos pelo intelecto. Nunca é demais o cuidado que se põe na escolha dos inimigos. Só tenho um que seja parvo. Quanto ao dinheiro, para mim é apenas um bem com função social, me parecendo perfeitamente adequado partilhá-lo com amigos que se encontrem dele desprovidos.


Inquiridor: — [Subitamente] Alguma vez beijou o Sr. Taylor, Sr. Wilde?

Wilde: — Oh! Não, por favor. Ele era muito feio. …Ainda que assegure serem os feios, assim como os idiotas, os mais bem-aventurados neste mundo!: Podem à vontade aproveitar o show. Se não saboreiam as delícias do sucesso, também não são consumidos pelo fel do fracasso. Não promovem a desgraça alheia, mas também não a recebem das mãos dos outros.

[Black out. Vozes em off. A luz vai revelando Oscar agora com o olhar atônito. Jogo de luz como que a indicar “tempestades” - pontuando o efeito de cada fala sobre ele.]

O Amigo: — A orquestração histérica que está sendo conduzida pela imprensa compromete tanto a imparcialidade no julgamento quanto a própria liberdade de pensamento — princípio que os ingleses tanto gostam de se orgulhar, mas que acaba freqüentemente suprimido, quanto mais se precise dele. O que estamos vendo é o ódio sob a máscara da Justiça: todos já fizeram o seu pré-julgamento. A concessão de fiança, tão freqüente nesses casos, foi reiteradamente indeferida, sem qualquer fundamento. O Senhor, através de seu jornal, pode lutar para que se faça um julgamento isento.

O Preconceito: — Pois saiba que, em minha opinião, qualquer obscuro homem do povo tem muito mais valor do que um Wilde ou mesmo Shakespeare. Não consigo atinar porque lhe dedicar semelhante consideração. Não passam de uns imorais. [Exaltada] Esses sem-vergonhas deveriam ser mortos a pancadas; a forca seria pouco. Para essa raça nojenta, só mesmo o extermínio.

O Sátiro: — Está havendo uma verdadeira revoada em Londres. Os trens e os vapores saem daqui apinhados. Por todo o canto no exterior a gente esbarra com a fina flor da sociedade inglesa, todos fugindo desesperados, com medo de também serem processados. E cada qual que apresente uma desculpa mais incrível para justificar viagem tão repentina.

[Retorna para o Tribunal]

Inquiridor: — Como chegou a conhecer o salão da Rua Colégio Pequeno?

Wilde: — Através do sobrinho do Procurador-Geral.

Inquiridor: — Estranho estabelecimento, não?

Wilde: — O senhor não gostou?! Me pareceu apenas um tanto boêmio.

Inquiridor: — Numa vizinhança pouco respeitável?

Wilde: — Era próximo à Câmara dos Comuns...

Inquiridor: — Sr. Wilde, queira esclarecer a este Tribunal o significado da frase “amor que não ousa dizer seu nome”, contida na carta que lhe foi enviada pelo Sr. Alfred Douglas:


Wilde: [Com uma pronúncia elegante, pausada, voz denotanto sinceridade sem afronta]

— Trata-se simplesmente da profunda afeição de um homem mais velho por outro mais moço, semelhante àquela que uniu Davi e Jônatas, e também àquela que se encontra nos sonetos de Miguel Ângelo e Shakespeare, e que Platão transformou na verdadeira base de sua filosofia. Tem inspirado inúmeras e grandiosas obras de arte (não só na Grécia). Entre elas poderia tranqüilamente incluir as duas cartas que escrevi ao Sr. Alfred Douglas. É um tipo de sentimento que geralmente tem sido incompreendido neste século. E é essa incompreensão que faz com que seja mencionado desta maneira: — o amor que não ousa dizer o nome. A minha presença aqui, por exemplo, é o resultado dessa dificuldade de compreensão. No entanto, é apenas uma outra forma forma de afeto. Acontece, porém, que a sociedade se sente mais apta a legitimar cenas de violência, humilhação, exploração, segregação...

[Em off, ouvem-se aplausos misturados com vaias. A voz do magistrado, com a autoridade peculiar, manda que todos silenciem, lembrando que a assistência não pode se manifestar, sob pena de evacuação do recinto. Faz-se um silêncio pesado.
Em seguida, sons de pessoas sentando e a voz grave do Juiz anunciando a sentença. — Sempre em off]

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